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quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A liberdade não se decreta

A partir deste episódio da História de França, um dos muitos raros momentos em que o governo daquele país se abriu ao liberalismo, podemos formular uma das críticas mais assertivas frequentemente feitas ao liberalismo político: que ele só se realiza no estado e no governo pela via da força. Nos dias mais recentes, o exemplo de Pinochet e do envolvimento de Milton Friedman e dos Chicago Boys na determinação das políticas econômicas naquele país durante a ditadura é o exemplo que costuma ilustrar esta argumentação.

É verdade que Turgot estava certo no que pretendia fazer e que das reformas liberais da economia chilena resultaria o “milagre chileno” e, posteriormente, a liberdade política. Mas alguma coisa deve estar profundamente errada numa “ideologia” política que, em certos casos, carece da força do estado – que tanto critica noutras circunstâncias – para se impor, ou que falha em resultado da pressão pública quando não possui essa possibilidade de coação. A questão é, porém, outra: o liberalismo não é uma filosofia de governo, não é uma ideologia, mas uma filosofia de cidadania, entendida esta na relação do indivíduo com o estado, a soberania e os poderes públicos. Se fosse uma práxis política, se concebesse a possibilidade de “transformar” a sociedade a partir da soberania do estado, o liberalismo não se distinguiria das outras filosofias políticas voluntaristas e construtivistas que defendem que o poder pode mudar unilateralmente uma sociedade e os seus cidadãos. E esse juízo envolveria, entre outros aspetos negativos, uma profissão de fé em relação ao “bom governo”, quando, como bem escreveu Popper nas Conjecturas e Refutações, de resto, na mesma linha das advertências de Lord Acton sobre a natureza corruptora de todo o poder, a limitação dos poderes de soberania e do governo deve ser independente das intenções e finalidades de quem o detém.

Decididamente, as sociedades não se “libertam” a partir do poder, mas a partir de si próprias e da resistência que oferecem à tendência invasiva que toda a soberania possui. O liberalismo não serve para gerar programas liberais de governo, mas para impor limites a que estes se transformem em governos socialistas e desmesuradamente intervencionistas. Essa resistência só pode ser oposta por uma sociedade com forte apreço pela liberdade e pela responsabilidade individual que ela comporta. Por isso, é no campo das ideias e da formação da opinião pública sobre a sua relação com o poder, a soberania e o estado que o liberalismo deve operar. Não é, de fato, fácil convencer uma sociedade a arcar com o peso da responsabilidade, da liberdade e da individualidade. É politicamente muito mais eficaz convencer os cidadãos que uma minoria esclarecida de políticos os governará rumo à felicidade e ao bem-estar, sem que eles tenham de sacrificar muito mais do que alguma renda mensal e certas prerrogativas da liberdade individual. A sociedade portuguesa, historicamente trepanada, empobrecida e escravizada por um estado centralizador e totalitário, é disso um bom exemplo. Já D. Pedro IV, a caminho da cidade do Porto, logo após o desembarque no Mindelo, estupefato com a pouca adesão popular que o seu movimento “libertador” recebia de uma população fortemente miguelista, advertiu os portugueses para que o não obrigassem a libertá-los “pela força”... Hoje, ao fim de décadas de socialismo e de estatismo que lançaram o país na miséria, os portugueses e os partidos que os representam continuam a clamar pelo estado social e pelo aumento da ingerência do governo nas suas vidas. Este cenário não será, de resto, muito distinto do que se passa noutros países do mundo democrático e desenvolvido.

Na medida do que aqui fica dito, há que acrescentar que a única maneira do liberalismo exercer alguma influência positiva no governo de um país será através da influência que possa exercer sobre os partidos conservadores quando estes se encontram no poder. Como é sabido, o conservadorismo não é, ao contrário do liberalismo, uma filosofia sobre o indivíduo, mas sobre o estado, o governo e as instituições sociais. O pensamento liberal pode, por vezes, conferir a um governo conservador uma muito razoável dimensão de respeito pelos indivíduos e pelas suas liberdades e direitos fundamentais. Foi o que sucedeu, no nosso tempo, com os governos de Ronald Reagan, Margaret Thatcher e José Maria Aznar. Que não eram, todavia, governos liberais, porque governos liberais, por definição, não existem.

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